O Colegiado do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE vem a público manifestar sua posição diante dos fatos noticiados recentemente envolvendo o povo Guarani da região oeste do Paraná.
Às vésperas da conquista, no século XV, os Guarani ocupavam uma extensa área que abrangia os atuais estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, além de partes de países vizinhos. O maior número dos grupos locais encontrava-se, principalmente, nas florestas tropicais e subtropicais, ao longo do Rio Paraná. Fontes espanholas do final do século XVI e jesuíticas do início do século XVII, utilizadas em diversas etnografias e amplamente estudadas nos cursos de Ciências Sociais, apontam que para a região do Guairá a estimativa populacional era entre 200 mil (hipóteses mais humildes) e 1 milhão de indivíduos (hipóteses fortes).
Da conquista para cá, o povo Guarani vive em um conflito permanente e ininterrupto com nossa sociedade. No oeste do Paraná, após o período das reduções continuaram sofrendo as consequências geradas por duas frentes de expansão: a extrativa e a de colonização. No início do século XX, por exemplo, uma empresa de erva-mate arrendou sozinha uma área de 1 milhão de hectares, como se fosse área “vazia”, ignorando a existência indígena na região.
Outro momento de intensificação dos conflitos foi com a criação do Parque Nacional do Iguaçu em 1939, que removeu comunidades inteiras em nome da conservação da natureza, opondo as necessidades dos grupos que ali existiam à possibilidade de manutenção do parque.
Um documento importante que testemunha de forma incontestável a presença Guarani e de outras etnias no estado do Paraná ao longo do século XX é o reconhecido mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú, elaborado durante os anos 1940. O mapa demonstra a existência de aldeamentos indígenas espalhados por todo o estado e é largamente usado como fonte documental, inclusive por órgãos governamentais e do Poder Judiciário.
Fonte: Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes. Curt Nimuendajú 1944 Rio de Janeiro, IBGE - Fundação Nacional Pró-Memória, 1981.
Recentemente, foi localizado pela Comissão Nacional da Verdade o Relatório Figueiredo, apresentado em 1968 como resultado de uma Comissão instituída pelo Ministério do Interior do Governo Federal para apurar irregularidades no antigo Serviço de Proteção aos Índios. O relatório apontou, dentro de uma série de denúncias, as inúmeras torturas e violências a que foram submetidos os Guarani durante todo o período de colonização do oeste do Paraná e Mato Grosso do Sul, nas décadas de 1940, 1950 e 1960, com a participação e conivência do SPI, órgão que, como seu nome sugere, tinha a responsabilidade de protegê-los. A 7ª Inspetoria que tinha sua sede em Curitiba ficou conhecida como a mais corrupta e violenta das inspetorias do SPI, atuou a favor de interesses das madeireiras e das empresas de colonização no processo de desocupação da região por cerca de 30 anos, utilizando-se de práticas de espancamentos, crucificações, cárcere privado, trabalho forçado e o tronco:
Trecho do "Relatório Figueiredo" |
O relatório denunciou ainda que para fugir às violações, os grupos indígenas da região buscaram refúgio nas matas e nos países vizinhos.
Continuando esse roteiro de barbáries, temos o processo de construção da hidrelétrica de Itaipu que, anos após sua instalação, reconheceu os equívocos cometidos nas desapropriações das comunidades indígenas, conforme descrito no “Relatório do Grupo de Trabalho Funai/Itaipu Binacional”, de 1994, e reviu a política de indenizações aos Guarani. Importante salientar que essa revisão significa um reconhecimento, ainda que tardio, da presença guarani na região em anos recentes.
Apesar do suposto mito do “vazio demográfico”, estudado pelo historiador Erneldo Shallenberger, utilizado como justificativa para ocupação das terras indígenas no estado do Paraná, e contrariando o discurso do senso comum que afirma a existência de índios na região apenas no século XVI, o povo Guarani sempre esteve presente se interpondo aos interesses das oligarquias locais. Os Guarani passaram por toda essa história de violências mantendo sua unidade linguística e cultural. Atualmente, são representados pelos subgrupos Kaiowa, que habitam o sul de Mato Grosso do Sul, os Mbya, que formam comunidades em vários estados brasileiros e em outros países como Argentina e Paraguai, e os Guarani-Ñhandeva, que vivem nos estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo e no Paraguai.
Desde tempos imemoriais, esses subgrupos têm a família extensa como base de sua organização social, econômica e política. Isto é, grandes grupos familiares que vivem próximos uns dos outros, mas em casas esparsas e dispostas em uma determinada área que, à primeira vista, passam a impressão de desorganização, uma casa aqui outra lá, aparentemente sem critério e sem unidade. O conjunto dessas casas esparsas forma uma comunidade Guarani, liderada geralmente por um casal mais velho que orienta espiritualmente e dá sustentação moral ao grupo. Esse modo de vida tal qual o conhecemos hoje, a estrutura de suas aldeias, suas roças de mandioca e milho, suas moradias, é semelhante ao das aldeias do século V encontradas por arqueólogos que realizaram pesquisas na bacia do Paraná. Existe entre os pesquisadores o consenso de que a cultura Guarani que está em gestação há pelo menos um milênio mudou muito pouco até então. O que por si já é algo muito raro, pois as culturas mudam e os Guarani, mesmo quando são obrigados a se adaptar às condições impostas por nossa sociedade, permanecem resistindo. O que as pesquisas demonstram é que, ao contrário de muitos grupos étnicos, existe uma uniformidade da cultura entre os Guarani ancestrais e os de hoje.
Três elementos são milenares na cultura Guarani: a linguagem, os ancestrais mitológicos e o Teko, que é o comportamento social, o modo de ser e de viver. Diferentemente de outros grupos indígenas, os Guarani não ostentam pinturas, plumagens, brincos, colares ou aldeias dispostas em círculo, porque os bens materiais possuem importância secundária em sua cultura. O que de fato importa e tem valor para eles são aqueles elementos que servem para orientar o espírito. O povo Guarani é movido por um profundo sentido religioso e possui apego ao mítico, ao sobrenatural e ao cosmológico. A terra para os Guarani é instituição divina, dada por Nhanderú para realização de sua cultura.
Em um sentido estrito, a terra pode ser chamada de Tekoha. O tekoha é junção semântica do termo teko (modo de ser) com o sufixo verbal ha (causa, fim, lugar etc.), formando a palavra tekoha, que pode ser traduzida como o lugar de moradia das leis, dos costumes, o lugar onde se realiza o modo de ser guarani. A terra para o povo Guarani não é terra para plantar, comercializar ou lucrar, mas o lugar de ser guarani, lugar onde a sua cultura pôde se realizar. Na concepção guarani, sem tekoha não há teko, sem a terra não é possível haver comunidade, não é possível existir o homem guarani. A terra, desse modo, é o lugar para por em prática, como nos ensinou o antropólogo Bartomeu Meliá, sua religiosidade, a busca do bem viver, da Terra sem males. Esse modo de vida tão especial é baseado na reciprocidade, na economia do Jopói que significa, nas palavras de Meliá, nada trocar, nada vender, tudo colocar à disposição. Conceito que se opõe ao individualismo e à avareza tão presentes em nossa sociedade; talvez, bem lá no fundo, seja isso o que tanto nos incomoda: a convivência tão próxima com um modo de vida tão genuinamente solidário. É por isso que a luta pela demarcação das terras indígenas pode ganhar dimensões dramáticas.
A Constituição de 1988 estabelece em seu já bastante conhecido Artigo 231 que o direito dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam é um “direito originário”, que existe independente de qualquer reconhecimento oficial, pois como costuma frisar o famoso jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Dalmo de Abreu Dallari, é anterior à própria Constituição, e a demarcação destas terras é apenas um ato declaratório de reconhecimento daquele direito.
O procedimento para demarcação de terras indígenas, regulado pelo Decreto nº 1.775 de 1996, é técnico, longo e criterioso. Não é feito de qualquer maneira, como sugere o senso comum e os que são contrários às demarcações. Inclui um estudo realizado em várias etapas, conduzido por uma equipe multidisciplinar, coordenada por um antropólogo, e obedece a normas que estabelecem prazos e permitem a contestação. Não existe nada que impeça os legítimos interessados de participarem do processo que é, nas palavras de Dallari, “público e aberto a colaborações de boa-fé e bem fundamentadas”. Não obstante, o governo federal, em concordância com os interesses da bancada ruralista, tem desqualificado o trabalho da Funai, propondo submeter os estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas à análise de outros órgãos governamentais e suspendendo demarcações no estado do Paraná sob o argumento de que dados coletados pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) não atestam a presença indígena em áreas identificadas pela Funai. Todo esse processo intensificou o conflito entre produtores rurais e comunidades indígenas no estado do Paraná, produzindo um clima de hostilidade e intolerância.
As ofensivas anti-indígenas incluem desde a simples distribuição de panfletos, publicações regulares de matérias em jornais e outros meios de comunicação, até atentados à vida e ameaças de morte.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) da Regional Sul chama a atenção para o acirramento das violências contra a população indígena, que “vem sofrendo discriminações, abusos, difamações, tentativas de despejo de seus locais atuais de moradia como ocorreu, por exemplo, com os acampamentos de Tekoha Porã e Tekoha Y Hovy, em Guaíra, e com o Tekoha Araguaju, em Terra Roxa”.
Constituindo hoje uma das maiores etnias indígenas do Brasil, o Guarani é o grupo que menos terra possui. Na região de Guaíra e Terra Roxa, são 13 aldeias em situação de acampamentos, segundo informações registradas pelo CIMI, a maioria delas em condições sub-humanas. São cerca de 380 famílias, ou 1.300 pessoas, em sua maioria crianças, vivendo sob barracos de lona preta entre fazendas, pedreiras, terrenos abaixo da linha de transmissão, área do Exército, o porto internacional e lotes urbanos.
Denúncias de práticas de racismo e as precárias condições de existência as quais estão submetidas as comunidades levaram o Ministério Público Federal a instaurar 45 procedimentos administrativos, um procedimento investigatório criminal, além da instauração de 10 inquéritos policiais que podem ser acessados na página do MP, juntamente com os relatórios das visitas técnicas realizadas nos 13 Tekohas da região.
Toda essa animosidade tem por objetivo impedir que os índios, depois de séculos de espoliação, tentem reaver uma pequena parte do território que historicamente lhes pertence.
Diante do exposto, o Colegiado do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE manifesta sua preocupação com as ações e omissões do Estado brasileiro. E reafirmando seu compromisso com as comunidades indígenas, chama a atenção de toda a sociedade e, especialmente, das autoridades dos três poderes para a urgência da imediata retomada dos processos de demarcação das terras indígenas como única forma de fazer valer os direitos indígenas garantidos em nossa Constituição Federal e nas convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.